Quem diria? Bruno Blecher,
67, um homem extremamente urbano, criado em um centro industrial, São Caetano do Sul (SP), e num sobrado sem nenhum cantinho de terra para brincar, escolheria ser um correspondente do mundo rural, depois de formado em jornalismo pela Faculdade
Cásper Líbero. “Foi por acaso”, lembra Blecher. “Fui trabalhar no banco Itaú, que publicava
o Itaú Rural, um boletim muito bem feito, com reportagens sobre agricultura.” Ele gostou. E passou a gostar mais ainda ao assistir no Globo Rural o repórter José Hamilton Ribeiro se aventurando pelo Pantanal, ou com garimpeiros de Serra Pelada, seguindo a Trilha da Onça e em terras cultivadas com sementes — não com minas, como a que explodiu na sua perna esquerda ao pisá-la no Vietnã onde cobria a guerra para a revista Realidade,
em 1968.
“Agronegócio” era um palavrão quando apareceu no Brasil, trazido pelo visionário Ney Bittencourt de Araújo (1937-1996), da Agroceres, dezenove vezes eleita a favorita das sementes.
Do inglês agrobusiness, significa toda a cadeia produtiva do campo até a porteira da fazenda
– e, agora, mais ainda, do campo à mesa. “Gostei de ver que na área rural eu mexia com biologia genética, ciência em geral, solo, ecologia, gastronomia… que mais? Saúde, muita saúde”. Havia outra vantagem, acrescenta Blecher: “os repórteres, em geral, ficavam grudados no telefone; os da área rural, não, tinham que ir ao campo”.
Encontrei Blecher na praia de Bertioga, no litoral de São Paulo, onde está refugiado da Covid-19. Imaginei-o num sítio, dedicado a uma horta, crescendo animais e aplicando na terra o que aprendeu na sua longa experiência em agronegócio. Mas não. Por enquanto, no quintal da casa de praia, ele plantou uma jabuticabeira e um limoeiro. Sobra um bom espaço para uma horta, talvez no futuro. Uma de suas distrações são os passarinhos que atrai com comida: “Deram para brigar… Um sabiá do campo não deixa nenhum outro comer…” E ele comenta: “A natureza também é cruel.” Uma cadela Golden Retriever com 14 anos, hoje cadeirante, não veio para a praia, ficou em São Paulo. Conversamos por Zoom: “li faz pouco tempo que o boi é importante para o Pantanal. A boiada o sustenta e é parte de sua fauna.” Ele até publicou no Estadão reportagem sobre o boi ecológico pantaneiro. Não que Blecher esteja defendendo a tese do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, compartilhada pelo presidente Bolsonaro e a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, de que o “boi bombeiro” come capim seco, inflamável, e assim previne incêndios. Ele se baseia no poeta e fazendeiro Manoel de Barros,
que tinha boiada no Pantanal, e uma vez poetou: “Não estou na sarjeta porque herdei uma fazenda de gado. Os bois me recriam”.
O pantaneiro sempre cuidou da preservação do meio ambiente — assegura Blecher. “O boi
não atrapalha nada”. De 1986 a 90, ele trabalhou no suplemento agrícola do Estadão, dirigido pelo jornalista José Carlos Cafundó. “Fizemos muitas reportagens sobre sustentabilidade”. Uma delas quase tornou insustentável o seu próprio emprego: “Publiquei uma pesquisa do Inpe que revelava que a poluição produzida pela queima do canavial no interior paulista era tão grave quanto a poluição num grande centro urbano. As casas se cobriam de fuligem preta. Aí um usineiro importante ligou para o diretor Júlio Mesquita Neto e lhe deixou com uma dúvida: seria o repórter um verde ou vermelho? O doutor Julinho chamou Zeca Cafundó a sua sala, e ordenou: – Pau neles!”
Na Folha, onde passou 12 anos depois que saiu do Estadão, em 1990, aconteceu um caso que
também acabou na sala do dono, o doutor Frias. A pauta era um concurso que premiava a vaca
que desse mais leite, a Miss Leite B. O repórter Blecher foi lá, resolveu dar uma volta pelos bastidores e, surpresa! pisou em seringas, muitas, espalhadas pelo chão. O que seria aquilo?
Consultou um veterinário que lhe explicou: “São bombas que fazem a vaca produzir mais leite”.
Algumas morriam depois. A denúncia foi publicada. Pediram a cabeça de quem mandou a Miss Leite B para o brejo.
“O doutor Frias me chamou. Diante dele, ouvi: —Sempre produzi leite. Minhas vacas são campeãs. Nunca foram dopadas.” (A ordem foi continuar escrevendo sobre doping.)
O jornalista de agro recebe convites para conhecer experiências internacionais com gado, agricultura ou tecnologia voltadas para o campo em várias partes do mundo. Blecher viajou bastante. Esteve no superanfitrião Israel, que convida equipes de TV, jornais, rádio e sites de internet para lhes apresentar o deserto florido, invenções para irrigação, como o pioneiro gotejamento, e inovações em tecnologia para agricultura, alimentos e conservação da água. Mas repórter é repórter. E ele logo se interessou pela invasão israelense do Líbano. Um amigo brasileiro-israelense de volta do front libanês lhe descreveu um quadro bastante pessimista, de uma perspectiva militar. Uma das frases que ele anotou se tornaria a base para um texto enviado à Folha: “O Líbano é o Vietnã de Israel.” Mas o convidado não deveria se limitar aos assuntos do agronegócio? Ele esperou uma reclamação, que nunca foi formalizada. Então, ele mergulhou no esgoto, tratado com tal eficiência que podia ser bebido. Ofereceram-lhe um copo, mas ele, como os próprios israelenses, achou que não era o momento de provar. Chamou-lhe atenção o monumento à entrada da Mekorot, a companhia nacional de água de Israel: uma enorme privada. Perguntei a Bruno Blecher se ele, como leitor, sentia-se bem servido de informações sobre agronegócio? Ele lembrou o Globo Rural, o Agro Mais (da Bandeirante) e o Terra Viva. Só televisão? “Você perdeu os suplementos agrícolas”, ele respondeu, “mas o Valor tem uma página diária que é muito boa.” Quem se interessa de
fato e requer atualização constante, recorre a sites especializados em várias partes do mundo,
ou cria seus próprios canais de informação.
Entre as viagens que fez a convite, Blecher destaca uma à França, onde o agro está muito
conectado ao urbano. “Tem o anual Salão de Agricultura, que é aberto pelo presidente francês.
São seis pavilhões. E serve uma ótima comida: muita gente sai do trabalho e passa lá apenas
para comer”. Mas, ao mesmo tempo, no outro lado de Paris, começa a feira de máquinas agrícolas. “Você está numa cidadezinha do interior da França, vai à feirinha e vê que o próprio produtor está ali vendendo o que colhe”, ele comenta.
“Já em São Paulo, por exemplo, vai tudo para o Ceagesp.” A exceção são as pequenas feiras de
produtos orgânicos que crescem no Brasil. Os supermercados abrem espaços para frutas, folhas e legumes plantados sem fertilizantes, naturais. Essa busca de produtos saudáveis, tratados de maneira sustentável, Blecher chama de tendência de “raiz”. Ele foi ao Nordeste para falar com curandeiras que caçam raízes. “Para mim, essa é a ligação com a terra, algo que ficou no passado”. A revolução no campo acabou sendo feita muito em cima de agrotóxicos e máquinas. “Tudo bem, né?”, ele comenta. “Resolveu um sério problema, pois muita gente ia passar fome, mas trouxe outros problemas”. O principal deles seria o uso intensivo de agrotóxicos. O Brasil corrigiu o solo ácido do cerrado, e o ocupou. Daí a enorme produção de soja, a liderança mundial de grãos. “Mas também foi o fim do cerrado…” Blecher está hoje contemplando um convite para voltar à grande imprensa. Recentemente,
associou-se à Agência Fato Relevante, criada pelo jornalista Alcides Ferreira, que o considera
“uma referência de excelência para o jornalismo do agronegócio e para os que acompanham o
tema sustentabilidade”. Também mediou um seminário para a Folha, que teve grande repercussão. Para ele, o agronegócio está vivendo atualmente um problema muito sério, que é a sua “liderança jurássica”. Os que estão por cima são os mesmos de há muitos anos. “Claro que tem gente nova, brilhante, mas sem poder, ainda, de promover profundas mudanças. São os dinossauros que fecham os olhos para o que anda acontecendo na Amazônia”. Blecher vai mais longe: “Foi o agro que botou Ricardo Salles no Ministério do Meio Ambiente”.
Num livro de crônicas que lançou faz pouco tempo, “Cidade de Papelão” (11 Editora), reproduz a epígrafe do romance “Bar Don Juan”, de Antônio Callado, que cita o poema do escritor
inglês W. H. Auden, “The Age of Anxiety” (A Era da Ansiedade). “Quando o processo histórico se interrompe… quando a necessidade se associa ao horror e a liberdade ao tédio, a hora
é boa para se abrir um bar.”
— Você está querendo abrir um bar? — perguntei.
Blecher riu. No final da crônica, ele repete: “Ando pensando em abrir um bar”. Mas ele diz
que não. Que se fosse abrir um negócio, seria um café, nos moldes do que viu em Tel Aviv, perto da praça em que Yitzhak Rabin foi assassinado. Ele entrou lá, no fundo encontrou uma poltrona confortável num jardim, e ficou lendo. Para o seu café, teria CDs, discos de vinil e livros há muito tempo guardados — “e eu venderia tudo”.