Enquanto o fogo consumia a Catedral de Notre-Dame na noite de 15 de abril de 2019, a atenção do apicultor Nicolas Géant estava voltada para os telhados da sacristia, onde três colmeias abrigavam 200 mil abelhas. “Elas estão vivas”, comemorou ele no dia seguinte, surpreso com a resistência dos insetos ao incêndio que destruiu parte do templo de 850 anos em Paris. A fumaça, em vez de matar, deixou as abelhas calmas.
As colmeias de Notre-Dame fazem parte de um programa de apicultura urbana iniciado em 2013 em edifícios históricos. Há mais de 1 mil delas em Paris, produzindo mel e polinizando os jardins da cidade.
Hortas, pomares, colmeias e fazendas verticais vêm ganhando espaço nas grandes cidades do mundo. Em junho, Paris inaugurou uma horta gigante nos telhados do Parque de Exposições de Versalhes de 4 mil m² com 20 espécies de frutas e vegetais. O objetivo é chegar a 14 mil m².
“A agricultura dentro e próxima das cidades faz parte das políticas públicas em vários países do mundo. No Brasil, ainda é pouco valorizada”, diz Marcela Alonso Ferreira. Ela é uma das pesquisadoras de um estudo sobre o papel da agricultura urbana e periurbana no sistema alimentar da metrópole de São Paulo, lançado esta semana pelo Instituto Escolhas em parceria com o Instituto Urbem.
“A principal pergunta é se esse tipo de agricultura é viável. E a resposta é sim, desde que haja capacitação, assistência técnica, crédito e outras formas de apoio”, diz Fernando de Mello Franco, diretor do Instituto Urbem e coordenador técnico do estudo.
Franco foi um dos criadores do Programa “Ligue os Pontos”, implantado pela Prefeitura de São Paulo em 2013, durante a gestão Haddad, para fortalecer a agricultura urbana. O programa foi premiado pela Bloomberg Philanthropies.
“Embora a zona rural represente quase um terço do território total, a agricultura do município não consegue atender nem a demanda de alimentos da rede pública de ensino municipal, de 2 milhões de pratos por dia. Aí, decidimos avaliar a capacidade de produção da metrópole de São Paulo para expandir o programa”, diz Franco.
De 550 no município o número de estabelecimentos agrícolas cresce para 5.083 quando considerada a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), em área de 1.235 km², 15,5% do território, segundo o Censo Agrícola 2017. Formada pela capital paulista e mais 38 munícipios, a região tem 21,6 milhões de habitantes, 7.945 km² e representa 17,7% do PIB nacional.
A metrópole reúne vários tipos de produtores, voltados em sua maioria para a horticultura e floricultura, segmentos pelo qual responde por 5% da produção nacional. Há empreendimentos de médio porte e larga escala, que abastecem os entrepostos, hortas comunitárias, agricultura familiar e até fazendas verticais de alta tecnologia.
O estudo do Escolhas avaliou a viabilidade de diferentes tipos e apontou o potencial dessas agriculturas contribuírem para tornar o sistema alimentar eficiente e sustentável. Do total de empreendimentos, 86,4% são pequenas propriedades (até 20 hectares), que produzem o equivalente a R$ 433 milhões.
Os pesquisadores fizeram algumas simulações com base em propriedades modelo. Uma delas projeta uma produção intensiva em 12.300 hectares em 8.800 propriedades como capaz de abastecer com verduras e legumes cerca de 12 milhões de pessoas por ano, o equivalente a população do município de São Paulo, e ocupar 53 mil pessoas.
As hipóteses apresentadas no estudo são exercícios para avaliar o potencial produtivo da região e estão distantes da realidade do campo. Tome-se o exemplo de Michele Mendes Osório, 34, que trabalha com a família no Sítio Alegria, em Cajamar, a 36 km da capital. Ela, o marido, Silvio, e os dois filhos mais velhos, Graziele (18) e Vitor (14), plantam abobrinha, repolho, alface e outros hortifrutis orgânicos em três hectares. Um hectare é destinado à agroecologia.
“Tudo aqui é difícil. A conexão com a Internet é lenta e já chegamos a ficar 30 dias sem energia. A renda depende do que a gente consegue tirar na feira. As famílias não têm dinheiro para comprar. Não dá para cobrar o que um alimento orgânico vale. É uma troca – um ajuda o outro”, diz Michele, que vende a restaurantes e diretamente ao consumidor.
A venda às escolas nem sempre dá certo. Durante a quarentena, os contratos com a Prefeitura foram suspensos e Michele teve que vender a safra de porta em porta. “Às vezes tenho vontade de desistir”, diz. “A gente faz aqui uma agricultura limpa, protege o solo, a natureza”.
Apesar das dificuldades, a agricultura familiar conseguiu escoar a produção com mais facilidade do que os estabelecimentos maiores na fase mais crítica da pandemia. “Os circuitos curtos, como os de produtores orgânicos, são próximos do mercado. Eles vendem em feirinhas e diretamente ao consumidor, sem intermediários”, diz Marcela.
Já nos circuitos longos, de estabelecimentos de maior escala, os alimentos passam por intermediários entre o campo e a mesa. Viajam das propriedades às centrais de abastecimento ou ao varejo tradicional, como supermercados, antes de chegarem ao consumidor. “Os custos de produção são mais altos e as margens mais baixas”, diz a pesquisadora.
O estudo aponta a produção orgânica e agroecológica como mais sustentável por oferecer alimentos frescos e saudáveis, eliminar o uso de defensivos e não depender da flutuação do dólar. Próxima ao consumidor, reduz perdas e custos de transporte e têm menor emissão de CO2.
“Os mapas mostram confluência entre as áreas de preservação e de produção. Se houver políticas públicas, a agricultura urbana e periurbana têm condições de conter a expansão urbana, garantir a floresta em pé e solos e rios saudáveis”, diz Jacqueline Ferreira, coordenadora do estudo.
A transição da agricultura convencional para a orgânica e agroecológica não é simples. Leva ao menos cinco anos e têm custo elevado. “A implementação inclui um período inicial de grandes investimentos e resultado financeiro negativo”, aponta o estudo.
No bairro União de Vila Nova, a 28 km do centro de São Paulo, o GAU (Grupo de Agricultoras Urbanas) planta hortaliças, frutas e plantas medicinais em 2.400 m² na várzea do Rio Tietê, próximo a São Miguel Paulista. “Voltar à roça mudou a minha vida”, diz Joelma Marcelino dos Santos, 47 anos, baiana de Ilhéus, onde a família trabalhava no cacau.
As mulheres do GAU são imigrantes nordestinas que resgataram suas raízes rurais e a autoestima. Elas fazem comidas vegetarianas e veganas. Vendem a produção na comunidade e à uma escola do bairro.
“O estudo recomenda uma política de acesso à terra, por meio de comodato de áreas públicas disponíveis. Muitos agricultores não têm terra e estão disponíveis para produzir”, diz Franco.
Mas sem ter um palmo de terra, a Fazenda Cubo, do engenheiro ambiental Paulo Bressiani produz 850 quilos de hortaliças por mês numa rua movimentada do bairro de Pinheiros, em São Paulo, a 8 km do centro da cidade. A fazenda indoor abriu as portas no começo de 2019 para produzir hortaliças em estantes, alimentadas por água, adubo e luzes LED.
Neste sistema, Bressiani, 31 anos, colhe verduras frescas, produzidas sem agrotóxicos. Além da qualidade superior dos alimentos, a vantagem é reduzir as perdas a quase. “As folhosas têm o maior índice de perdas entre as hortaliças. Cerca de 50% da produção é desperdiçada, a maior parte na logística”, relata o engenheiro.
A Cubo vende tudo sob demanda. Isto permitiu enfrentar a pandemia sem nenhuma queda na receita. “Começamos a fazer entregas domiciliares em março”, diz Bressiani, que anuncia a abertura de uma nova loja.
Parelheiros, bairro do extremo sul da capital, a 55 km do centro de São Paulo, é um reduto de caipiras paulistanos na definição de Luciano dos Santos, 45 anos, dono do Sítio Orgânicos do Vovô Joaquim e diretor do Sindicato Rural de São Paulo. Descendente dos primeiros alemães que chegaram ao Brasil em 1829, ele planta 30 hectares de raízes e tubérculos. “Beterraba, mandioquinha, açafrão, tudo o que dá debaixo da terra, e mais 20 hectares de plantas ornamentais”, diz.
Segundo ele, todas as madrugadas saem entre 150 e 200 caminhões de Parelheiros carregados com plantas ornamentais com destino aos entrepostos de São Paulo e do interior. De lá, as plantas são distribuídas para várias partes do Brasil e países vizinhos, como Argentina e Paraguai.
Durante 20 anos, Santos manteve um box na Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), mas há poucos anos resolveu vender a produção diretamente no sítio e nas feirinhas de orgânicos para aumentar sua margem. A tendência, segundo ele, é a comercialização direta. Com a pandemia, cresceu a venda de cestas de alimentos em condomínios. “Os consumidores querem alimentos frescos e saber onde e como são produzidos”, diz.
Esta aproximação entre o produtor e o consumidor pode quebrar a dicotomia urbano-rural, derrubando preconceitos e abrindo oportunidade para novos negócios como o turismo, aposta Fernando Franco. “A sinergia tem potencial para conter o espraiamento urbano, catastrófico para o meio ambiente, principalmente em regiões sensíveis como Parelheiros”.
Com 353 km, Parelheiros está em área de proteção de mananciais com remanescentes de Mata Atlântica. O território abriga aldeias Guaranis e vem sendo desmatado para implantação de loteamentos clandestinos.
O turismo rural está nos planos do Sítio Orgânicos do Vovô Joaquim.
A principal atração é o próprio Joaquim, pai de Luciano, que aos 71 anos ainda está na lida, plantando batata com a ajuda do burro Moleque para mostrar aos jovens como se fazia antigamente.