Debaixo do sol escaldante do sertão baiano, eles vão chegando aos poucos, armados de enxadas, foices e facões, para se reunir à sombra da grande castanheira, em frente à casa de Edésio Antônio de Oliveira, na Comunidade Papagaio, em Valente (BA).
Um forasteiro mais desavisado que passasse por ali naquela hora imaginaria tratar-se de uma concentração de sem-terra, prestes a invadir alguma fazenda da região.
Bobagem. Naquelas bandas do semi-árido, onde as chuvas são raras e os solos, pobres e esgotados, não resta um palmo de terra a ser ocupado.
Em Valente, prevalece a pequena propriedade familiar, de 10 ha em média, que a cada geração é ainda mais fracionada -em cinco, seis, dez pedaços- por causa dos casamentos dos filhos e de heranças. A maioria planta sisal, fibra vegetal utilizada para a confecção de fios, cordas e tapetes, além da alimentação animal.
O motivo da reunião na casa de Edésio é o “boi roubado”, uma tradição do sertão da Bahia, que em outros Estados é conhecida como mutirão.
Os vizinhos souberam que a 3 km dali, na terra de Erenita Leonice, o mato já estava cobrindo a palma, cacto que sustenta o gado durante a seca. E o pessoal de Erenita não dava conta da capina para “zelar” a palma.
Daí resolveram se unir para “roubar” a Erenita. As mulheres se encarregaram de levar a pinga; os homens, as ferramentas.
Na hora marcada, os camponeses saem em marcha pela caatinga, entoando uma cantiga que mais parece ladainha.
“Chegou mano, chegou/Chegou seu boi roubado na roça, chegou/Todo povo admirou, ôôô/ Quando o boi roubado na roça chegou.”
Erenita já andava desconfiada, mas faz cara de surpresa quando vê a procissão. Zé Raimundo solta os rojões, Antônio distribui a pinga, e o serviço começa.
Até o sol se esconder atrás das pequenas colinas da caatinga, os homens vão roçar o mato das lavouras, cantando e bebendo.
Depois, conforme reza a tradição, Erenita vai abater dois ou três bodes para servir a seus vizinhos.
Da lavoura à indústria
A união dos pequenos agricultores em Valente já gerou ações bem mais arrojadas do que o “boi roubado”.
De 1980 para cá, eles criaram uma associação, montaram três unidades de beneficiamento de sisal (batedeira), cooperativa de crédito, construíram uma escola rural, um clube e uma moderna indústria de tapetes e carpetes, avaliada em US$ 10 milhões.
Tudo isso compõe o patrimônio da Apaeb (Associação dos Pequenos Produtores do Município de Valente), resultado do trabalho das comunidades de base da Igreja Católica e do Movimento de Organização Comunitária (MOC), uma ONG baiana.
Cansados dos baixos preços oferecidos pelos comerciantes pelo sisal, os produtores filiados à Apaeb compraram sua primeira batedeira em 1984 e passaram a beneficiar sua produção.
“Antes, o sisal passava por dois ou três intermediários até chegar a um grande comerciante, que beneficiava e vendia as fibras às indústrias. O produtor ganhava pouco. Com a batedeira, a associação passou a comprar o sisal do produtor”, diz Ismael Ferreira, 40, gerente da Apaeb.
Poupança popular
A capacidade da batedeira (30t/mês) era pequena para atender a quantidade exigida pelos importadores. E a Apaeb não tinha capital de giro para ampliar a compra de sisal e investir em novas máquinas.
“Resolvemos, então, lançar a Poupança Apaeb, uma forma criativa, embora ilegal, de conseguir dinheiro”, lembra Ferreira.
A associação incentivou seus sócios e os moradores da cidade a lhe emprestar qualquer quantia que tivessem, por menor que fosse. Pagava a mesma remuneração da caderneta de poupança.
“Conseguimos levantar no primeiro ano (1990) US$ 30 mil; US$ 70 mil, no segundo ano; US$ 100 mil, no terceiro”, diz Ferreira.
O sucesso da poupança levou a Apaeb a criar uma cooperativa de crédito para legalizar a captação.
Exportações
Em 1989, a associação começou a exportar 100 t/mês de fibra beneficiada para Portugal, e sua entrada no mercado elevou os preços pagos aos produtor pelo sisal.
“Não foi o suficiente para manter os preços do sisal numa faixa razoável. Daí partimos para a indústria de tapetes”, diz Luiz Mota Souza, 47, produtor rural e presidente da Apaeb.
Com a assessoria do MOC, a associação levantou três financiamentos: R$ 4,4 milhões no Banco do Nordeste; US$ 550 mil com uma ONG belga (Disop) e US$ 300 mil com uma fundação norte-americana (Inter America). Mais US$ 1,5 milhão foi conseguido com recursos da própria Apaeb e empréstimos de curto prazo.
Em 94, dois enormes galpões de 2.500 m2 cada começaram a brotar em plena caatinga. As máquinas (teares, passadores e fiadeiras) vieram da Europa e ninguém sabia operá-las
“A fábrica começou a funcionar, aos trancos e barrancos, no final de 96. Tivemos que trazer um técnico da Holanda para ensinar os nossos operários. O sujeito não falava uma palavra de português; nós também não entendíamos holandês”, recorda Souza.
Nos primeiros seis meses, segundo Ferreira, a fábrica só produziu prejuízo.
“Em vez de contratar mão-de-obra de fora, resolvemos treinar o pessoal da região, a maioria filhos de agricultores.”
Projetos sociais
Hoje, a fábrica emprega 570 operários, com salário médio de R$ 220, e fatura R$ 950 mil/mês com a venda de 120 mil m2 de tapetes e carpetes no mercado interno e exportações para Europa e Estados Unidos.
O lucro é reinvestido na fábrica e também banca os projetos sociais da Apaeb, todos eles voltados à valorização do sisal e à melhoria das condições de vida e de trabalho dos pequenos agricultores da caatinga.
Em 96, o produtor recebia cerca de R$ 150/t pelo sisal comum. Hoje, há três tipos de fibras. A mais comum vale R$ 320/t e a tipo 1, de melhor qualidade, R$ 420/t.
Para os dirigentes da Apaeb, o que foi feito até agora representa apenas uma gota d’água no deserto sertanejo. “Falta tudo: assistência médica, escolas, saneamento básico e políticas públicas para vencer a miséria”, diz Ferreira.
“Paraibanas” mutilam trabalhador
do enviado especial
O sisal passa por dois processos de beneficiamento antes de chegar à indústria.
Após o corte, as palmas são transportadas em jumentos para serem desfibradas ainda no campo nas chamadas “paraibanas”, velhas e perigosas maquinetas movidas à diesel.
Nessa operação, o trabalhador (cevador) usa as duas mãos ao mesmo tempo: enquanto uma puxa a fibra já mastigada pela máquina, a outra empurra uma palma ainda intacta, movimento repetido cerca de 3.000 vezes por dia.
Qualquer distração pode ser fatal. As “paraibanas” já deceparam pelo menos 2.000 mãos na região sisaleira da Bahia.
Os trabalhos de campo (corte e desfibramento) são feitos por empreitada.
O dono da máquina e sua equipe ficam com 70% da produção bruta de sisal; o produtor, com 30%.
Parece muito, mas no final não sobra mais de R$ 35 por semana, às vezes menos, para o dono da “paraibana”, que geralmente enfrenta uma jornada de 10 a 12 horas por dia.
Proprietário de uma dessas máquinas, Martinho Lima de Oliveira, 53, trabalha com mais cinco pessoas.
Dependendo do tipo de fibra, consegue fazer entre 400 kg e 500 kg por dia.
Paga cerca de R$ 35 por semana para seus companheiros e, quando muito, também consegue tirar R$ 35/semana.
Vital Miranda dos Santos, 44, trabalha com o “motor” há 28 anos, normalmente 11 horas por dia.
Ele recebe cerca de R$ 30 por semana e diz estar acostumado com o barulho e os riscos da máquina.
Após o desfibramento, o sisal é pendurado em varais para secagem. Já secas, as fibras seguem então para as batedeiras, onde são escovadas e classificadas, antes de serem enviadas para as indústrias.
Nas batedeiras, as condições de trabalho também são precárias e insalubres.
Uma poeira asfixiante toma conta dos galpões mal-iluminados onde ficam as máquinas, provocando muitas vezes doenças respiratórias crônicas nas trabalhadoras, que recebem 1 salário mínimo por mês pelo serviço.
SISAL
Criação de caprinos e ovinos, novos plantios e energia solar ajudam sertanejo a conviver com a seca
Diversificação melhora renda agrícola
do enviado especial a Valente
A Apaeb desenvolve uma série de projetos voltados à melhoria da renda dos pequenos produtores da caatinga, por meio da introdução de tecnologias que permitam a convivência com a seca.
“O produtor não aproveita todos os recursos de sua propriedade”, diz Evandro Barbosa Magalhães Campos, 36, técnico agropecuário da associação.
Além do sisal, a associação orienta os agricultores a diversificar sua produção com a criação de caprinos e ovinos e lavouras de sequeiro (palma, leucena, algaroba, entre outras plantas).
A Escola Família Agrícola “Avani de Lima Cunha”, construída em 96 com o apoio de ONGs dos EUA, é um dos instrumentos da Apaeb para reestruturar as unidades de produção familiar.
“Ensinamos tecnologias alternativas aos filhos dos produtores. E alguns alunos estão conseguindo mudar a cultura da comunidade”, diz Campos.
José Alves da Silva, 46, de São Domingos, município próximo a Valente, dono de 86 tarefas (37,3 ha), comprou seis cabras e oito ovelhas em 1996.
Com a criação, Silva aumentou sua renda mensal de 1 para 2 salários mínimos mensais, além de reduzir suas despesas na feira. “Não falta carne nem leite para a família”, diz Silva, casado, cinco filhos.
Seu rebanho agora tem 53 ovelhas e 12 cabras, alimentadas com ração feita de resíduo de sisal.
Com a orientação dos técnicos da Apaeb, Silva construiu dois silos para armazenar a ração. Um deles tem 6.000 kg, o suficiente para suportar seis meses de seca.
Energia solar
Uma pesquisa realizada pela Apaeb com 40 associados que participaram dos programas de assistência técnica mostra que a renda média mensal cresceu de 1 para entre 2 e 3 salários mínimos.
Os produtores estão mais preocupados em estocar ração para o gado, reflorestar suas propriedades com árvores frutíferas ou forrageiras e construir tanques e cacimbas (poços) para o armazenamento de água.
Com a ajuda da associação, alguns deles instalaram placas de energia solar em suas propriedades, que permitem a iluminação das casas e a eletrificação das cercas para a criação de caprinos e ovinos.
No final do ano passado, a Apaeb inaugurou um curtume para o aproveitamento do couro e das peles das cabras e ovelhas.
A associação compra de seus associados a pele ovina por R$ 7 e a caprina por R$ 4. E a intenção é iniciar a produção de calçados, bolsas e roupas de couro. (BB)