A gurizada pega cedo no batente no interior gaúcho. Na região de Santa Cruz do Sul (155 km de Porto Alegre), onde predomina a cultura do fumo, a iniciação se dá aos sete ou oito anos, quando a criança já ajuda o pai em pequenas tarefas.
“Aqui o trabalho infantil é valorizado e não há sentimento de culpa. Faz parte da tradição das famílias, em sua maioria descendentes de alemães”, diz João Pedro Schmidt, 35, professor de filosofia da Unisc (Universidade de Santa Cruz do Sul) e vereador pelo PT.
É uma espécie de pacto silencioso, envolvendo agricultores, indústrias e a sociedade. “Esse assunto aqui é tabu. Como não há abusos e não impede o estudo, o trabalho infantil é tolerado e até incentivado”, diz Schmidt.
Praticada por pequenos agricultores -a área média das propriedades é de 18 hectares-, em regime familiar, a cultura do fumo é base de subsistência de cerca de 12 municípios gaúchos.
O fumo é produzido em sistema de integração com a indústria. O produtor recebe das fumageiras as sementes e financiamento para a compra de insumos. Em média, os minifúndios da região conseguem renda anual de R$ 8.000 com o fumo, segundo a Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra).
Filho de agricultor, Schmidt começou a trabalhar aos quatro anos. “A cultura do fumo exige mão-de-obra intensiva e acaba envolvendo o trabalho de toda a família”, afirma.
Agrotóxicos
“Se impedirmos o trabalho infantil, vamos arrebentar o orçamento das famílias”, diz Carlos Augusto Fiorioli, promotor de Justiça em Venâncio Aires, cidade a 40 km de Santa Cruz do Sul.
A maior preocupação da Promotoria, segundo Fiorioli, é preservar a saúde das crianças, evitando sua exposição aos agrotóxicos.
Para combater doenças e pragas, os agricultores chegam a despejar 25 quilos de veneno em cada hectare de lavoura. Poucos utilizam equipamentos de proteção.
Nas épocas de plantio e colheita, os casos de intoxicação são frequentes na região. O hospital de Venâncio Aires chega a atender entre 8 e 10 agricultores por dia.
“Durante a colheita de 95, meus dois guris e eu passamos mal e fomos parar no hospital”, diz Rogério Aluizio Heinen, 40, produtor de fumo em Venâncio Aires.
Heinen explica que as intoxicações são comuns na época de colheita, por causa dos resíduos dos pesticidas nas folhas. “Basta colher as folhas ainda úmidas pelo sereno e tomar sol em cima”, diz.
O problema não é exclusivo da região. Em outro pólo de produção de fumo do país, em Arapiraca (AL), os pais que levam seus filhos para trabalhar nas lavouras estão espantados com o alto índice de suicídios e intoxicações registrados entre crianças e adolescentes.
Em 1996, foram anotados oficialmente 28 suicídios. As vítimas, na maioria, são meninos e meninas que manipulam agrotóxicos.
Estima-se que o número seja ainda maior, pois grande parte das pessoas intoxicadas não passa por hospitais ou repartições onde são feitos registros oficiais.
O pânico diante da situação tem levado muitos pais, que não podem deixar de usar agrotóxicos nas suas plantações, a enterrar em lugar desconhecido pelas crianças os pesticidas.
“Uso na plantação e depois escondo das crianças”, diz o agricultor Antonio José dos Santos, pai de Rosileide, que se suicidou em 1996, aos 21 anos, após ter sido vítima, desde os 15, de intoxicação.
Mão-beijada
Responsável por um faturamento de US$ 10 bilhões em 96, a indústria do fumo é favorecida pelo trabalho infantil nas lavouras.
“Essa mão-de-obra é desconsiderada e sai de mão-beijada para a indústria”, afirma o agricultor Ari Thessing, 33, vereador em Santa Cruz do Sul.
Também é essa a conclusão de um relatório elaborado pela Comissão Estadual de Combate ao Trabalho Infantil no Rio Grande do Sul: “A produção é feita fundamentalmente com mão-de-obra familiar. É justamente esse aspecto que garante preços de produção relativamente baixos e permite que o produto possa competir no mercado internacional.”
As duas entidades que representam a indústria do fumo (Abifumo e Sindifumo) negam esse favorecimento (veja texto abaixo).
Com base em dados do IBGE, o relatório indica também que 36,2% dos jovens gaúchos na faixa etária entre 10 e 17 anos estavam inseridos no mercado de trabalho em 1993. O contingente de menores trabalhadores é ainda mais alarmante no meio rural, onde atinge 58,6% das crianças na faixa entre 10 e 14 anos. UTRO LADO
Entidades têm divergência
do enviado especial
As duas entidades que representam a indústria brasileira do fumo têm argumentos conflitantes sobre o trabalho infantil nas lavouras.
“Desconheço o trabalho de crianças. Não tenho ido às lavouras”, diz Nestor Jost, presidente da Associação Brasileira da Indústria do Fumo.
Hélio Fensterseifer, presidente do Sindicato da Indústria do Fumo do Rio Grande do Sul, diz que as crianças apenas contribuem com os pais em pequenas tarefas, como colher as folhas e classificar o fumo.
“Não há exploração. Elas frequentam as escolas normalmente. Ensinamos as crianças a trabalhar naquilo que elas podem fazer”, diz Fensterseifer.
Segundo ele, o preço do fumo é baseado em levantamentos de custos realizados pela Afubra e pelo Sindifumo. A mão-de-obra representa 63% dos custos.
“Não existe vínculo empregatício entre a indústria e o produtor. Na propriedade, o agricultor faz o que bem entender, inclusive planta outros produtos além do fumo. Ele utiliza a mão-de-obra que está disponível”, diz Fensterseifer.
No ano passado, a indústria brasileira de fumo faturou US$ 10 bilhões, sendo US$ 1,5 bilhão com exportação.
Maior exportador mundial de fumo, o Brasil ocupa a terceira posição no ranking dos maiores produtores.
A indústria do fumo é a que mais recolhe impostos no país (R$ 7 bilhões em 1996).
As maiores empresas estão instaladas na região de Santa Cruz do Sul: Souza Cruz, Dimon, Philip Morris, Kannenberg, Meridional, Universal Leaf, Brasfumo e CTA (Continental Tabacos Aliance).
A Souza Cruz, líder do setor, inaugurou em dezembro último, em Santa Cruz do Sul, o maior complexo industrial de fumo do mundo.
Sobre o trabalho infantil nas lavouras, a Souza Cruz prefere não se manifestar.
Procurada pela Folha, a assessoria de imprensa da empresa informou que o assunto deve ser tr
Crianças deixam escola após 4¦ série
do enviado especial
Como no resto do país, trabalho não rima com escola para as crianças da região produtora de fumo do Rio Grande do Sul.
Leandro Sestari, secretário de Educação de Gramado Xavier, município recém-emancipado que fica a 75 km de Santa Cruz do Sul, começou a trabalhar com fumo aos oito anos.
“Era um orgulho ir com o pai para a lavoura. Mas, em casa, a escola sempre foi prioridade”, afirma ele.
Para Sestari, a criança deve ser encaminhada ao trabalho desde cedo, mas em serviços compatíveis com seu físico e sem prejudicar seu lazer e suas atividades escolares.
“O problema”, acha o secretário, “é que nem sempre existe bom senso dos pais”.
Ele cita, como exemplo, os meeiros da região que, por necessidade de mão-de-obra, acabam segurando seus filhos na lavoura.
Quarta série
Os números impressionam. Gramado Xavier é um pequeno município, com uma população de apenas 3.730 habitantes.
Entretanto, pode contar cerca de 50 crianças que abandonaram a escola após a conclusão da quarta série, segundo dados da própria Secretaria Municipal de Educação.
“Esses jovens acabam servindo de suporte para a subsistência de suas famílias”, diz o secretário Leandro Sestari.
O ingresso prematuro das crianças no trabalho, segundo ele, acaba acelerando a evasão escolar.
Madalena Meireles, 15, largou a escola no ano passado para ajudar o pai, Isaias, na cultura do fumo.
Meeiro, Isaias, 35, conseguiu tirar apenas R$ 2.200 com o fumo na safra passada.
“Foi o que me restou depois de pagar adubos, venenos e a parte do proprietário da terra.”
Para tocar a lavoura, Isaias conta com o trabalho de toda a família -o que significa pai, mãe, mulher e quatro filhos.
Chuvas
No pequeno povoado de Rio Pardinheiro, em Gramado Xavier, a Escola Municipal de 1º Grau Incompleto Coronel Oscar Rafael Jost costuma ficar às moscas nos dias de plantio, em setembro.
“Depois das primeiras chuvas, os alunos somem”, diz a professora Maria Conceição Sbruzzi.
Junior de Oliveira, 10, aluno da quarta série, ajuda o pai a surtir (classificar) e atar fumo.
Também colabora com a economia familia na época do plantio e da colheita.
Seu colega Joelmir Anderson de Freitas Pimenta, 10, começou a trabalhar aos sete anos.
Ele ajuda a família em várias tarefas, mas não mexe com veneno. “O pai não deixa”, diz o menino.